Lygia

Gabriel Themotheo
3 min readApr 11, 2022

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Por mais que o meu conhecimento em sua obra não seja lá grande coisa, costumo dizer que foi Lygia quem me pariu. Isso porque, quando criança, li o clássico conto Venha Ver o Pôr do Sol, não lembro agora se no próprio livro de literatura da escola ou em alguma antologia de contos brasileiros que circulava na época. Não importa muito. Quando li aquela história, ainda não havia para mim Harry Potter ou O Senhor dos Anéis. Quer dizer, até havia, mas não como leitura, apenas como cinema.

Também não havia Poe, Lovecraft, Clarice, Kafka, Hilda Hilst, Dostoiévski, Herman Hesse. Esses nomes só viriam muito mais para frente, anos depois. Até ali eu era virgem de literatura. E mesmo que já houvesse me debruçado sobre pequenos clássicos infanto-juvenis, como alguns da maravilhosa Coleção Vaga-Lume e quadrinhos da Turma da Mônica, X-Men e Dragon Ball, nenhuma dessas leituras havia me tocado forte o suficiente para fazer surgir o ímpeto de eu mesmo começar a criar as minhas próprias histórias. Tudo ainda me era muito passivo.

Além disso, a literatura brasileira para mim, uma criança ansiosa por grandes histórias, era entediante, meramente um conteúdo escolar. Um dever, e como todo dever, um martírio. Anos depois passei a ver qualidade nos livros que antes não via, como se fosse uma habilidade adquirida, um fruto que eu não tinha acesso por não ter altura suficiente.

Mas o pequeno Gabriel, que se entediava facilmente, ficou fascinado com Venha Ver o Pôr do Sol: sua estética quase gótica, até então por mim inexplorada, o suspense perfeitamente cadenciado, o final surpreendente (o que os jovens hoje chamam de plot twist). Tudo ali me excitou. Depois veio Álvares de Azevedo, com Noite na Taverna, depois Drácula, de Bram Stocker. Agora já adolescente, completamente submerso na angústia inebriante do rock triste, ansiava por me aventurar no ultrarromantismo, no horror, na literatura fantástica.

Não é para menos que, na primeira vez que me coloquei a escrever de fato, foi dentro do gótico que decidi ambientar o meu primeiro conto, A Dama de Veneza, praticamente uma versão alternativa do texto da Lygia. Quase uma fanfic. Mesmo que hoje eu o ache genérico e um tanto mal escrito, ele recebeu menção honrosa no Prêmio Ideal Clube de Literatura em 2010, por isso lhe guardo um certo carinho

De lá para cá (peço perdão pela cacofonia), pouco li Lygia. Apenas um ou outro conto, como As Formigas e Herbarium. Com o tempo, outras coisas me influenciaram muito mais. Não por serem melhores ou piores, mas porque as escolhas literárias que fiz me levaram por outras veredas. Tive a fase kafkaesca, a clariceana, a roseana. Imitando um dos métodos machadianos, que se apropriava das leituras, estilos, técnicas, narrativas, maneirismos e estruturas como alguém que se debruçava sobre um objeto de estudo, eu fui tentando utilizar essas influências, primeiro por imitação mesmo, depois por absorção na minha própria escrita, transformando-as em um traço imanente. Uma espécie de antropofagia.

Coincidência ou não, no mesmo ano do falecimento de Lygia, estou publicando o meu primeiro livro físico, a antologia de contos Os Abutres Ainda Esperam o Céu Vermelho, doze anos depois de A Dama de Veneza e uns vinte e poucos anos depois da primeira leitura de Venha Ver o Pôr do Sol. A Dama de Veneza não faz parte dessa antologia, mas Caio Balaio, poeta que prefaciou meu livro, que não me conhecia nem havia lido nada meu anteriormente, deu, como título para o prefácio, justo o mesmo título do conto de Lygia. Venha Ver o Pôr do Sol. E eu, completamente embasbacado, percebo mais uma vez que coincidências não existem.

Na verdade, Lygia provavelmente ainda está em mim, como todos os outros e outras, e em uma ou outra esquina, no entremeio das frases, na entrelinha dos versos, deve haver uma Lygia ali. Viva. Escondida. Em silêncio. A me olhar, por entre as frestas de grade da portinhola fechada. Fumando um cigarro no cemitério, ao lado de Hilst e Lispector. Enquanto o sol se põe.

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Gabriel Themotheo
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